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A noção de cotidiano

   “malgrado a ficção da página em branco, sempre escrevemos sobre algo escrito”.


Michel de Certeau

Esta linha de trabalho tem por objetivo estudar o cotidiano como uma noção, ligada a outras, como ordinário, comum, etc. e que comparece formulada, explicitamente ou não, no processo de constituição do conhecimento científico sobre a linguagem, a língua e as línguas.

 

A respeito dessa linha de pesquisa, cabe mencionar textos de alguns autores que trabalham mais ou menos diretamente com a questão do cotidiano, no âmbito de estudos da linguagem, de modo geral, e de análise de discurso, semântica e história das ideias linguísticas, de maneira mais específica.

No espaço francês lembramos, por exemplo, as obras 

 

  • A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer, de Michel de Certeau (1980) e A invenção do Cotidiano. 2. Morar, cozinhar, de Michel de Certeau, Lucie Giard e Pierre Mayol (1994), que buscam estudar as práticas cotidianas do homem ordinário que inventam modos de escapar à conformação de uma razão técnica.

 

Lembramos também o livro

 

  • O discurso: estrutura ou acontecimento, de Michel Pêcheux (1983), em que o autor destaca que o cotidiano se torna uma questão – ele estava na década de 1980 – de áreas como a História, a Sociologia e mesmo nos Estudos Literários, em aparece cada vez mais explicitamente a preocupação de se colocar em posição de entender esse discurso, a maior parte das vezes silencioso, da urgência às voltas com os mecanismos da sobrevivência, das circulações cotidianas.

 

Lembramos ainda a obra

 

  • A revolução tecnológica da gramatização, de Sylvain Auroux (1992), em que o saber é considerado como uma realidade histórica que é produzida no dia-a-dia, cotidianamente. Para Auroux, há um limite, que não é fixo, entre o saber epilinguístico e o saber metalinguístico, sendo a relação entre esses dois saberes tomada como um continuum (p. 33).

 

No Brasil, desde a década de 1970, os primeiros trabalhos de análise de discurso já se faziam, empresto aqui as palavras de Pêcheux (1983), para “além da leitura dos Grandes Textos (da Ciência, do Direito, do Estado)”, para “se pôr na escuta as circulações cotidianas, tomadas no ordinário do sentido”.

Passando para a década de 1980, é importante destacar o Projeto Discurso, Significação, Brasilidade, idealizado e coordenado por E. Orlandi na Unicamp, que tinha como objetivo estudar os diversos processos discursivos relevantes para a configuração da brasilidade, tais como cantigas, canções, humor, narrativas, em seus aspectos público, jurídico, linguístico, cultural, popular, em suas relações com a língua e a literatura do/no Brasil.

A realização dessas pesquisas produziu consequências importantes para os projetos internacionais que constituíram o Programa de História das Ideias Linguísticas no Brasil na década de 1990, possibilitando que as investigações sobre a constituição dos saberes metalinguísticos fossem pensadas pela interrogação das conjunturas históricas próprias do espaço brasileiro.

São várias as produções que tocam a questão do cotidiano dessa perspectiva da História das Ideias Linguísticas e também de uma perspectiva discursiva ou enunciativa, que leva em conta a materialidade da língua, tal como propõe Michel Pêcheux. No âmbito desses trabalhos, há uma série de produções, muito diferentes entre si, que tocam a questão do cotidiano, ao discutir sobre:

  • O estereótipo e suas contradições, que também pode ser considerado como uma forma de resistência (Orlandi, 1977 [ver nota 1], 1988; Ferreira, 2001);

  • As relações de poder do cotidiano que constituem o juridismo, com respaldo no senso comum (Lagazzi, 1987, 1988);

  • O papel do cotidiano na produção de políticas linguísticas e das políticas de sentidos das línguas (Orlandi, 1985; Orlandi e Souza, 1988; Orlandi, 2009; Mariani, 2004)

  • A questão do discurso cotidiano com foco na conversa (Mattos, 1991);

  • O clichê e o processo de autoria na escola, bem como do clichê no processo de constituição da brasilidade (Pfeiffer, 1997, 2001);

  • A desorganização cotidiana nos sentidos da/na cidade, da periferia, sobre a pichação e sobre as “minorias” (Orlandi, 1999, 2004, 2014a); 

  • O cotidiano das ruas, em placas, nomes de rua, outdoors, folhetos, anúncios em auto-falantes, música, luminosos, pontos de referência, imagens, (Guimarães, 2003a; Fedatto, 2011, 2013; Nunes, 2013; Scherer e Romão, 2013; Rodriguez, 2014);

  • ​A relação entre língua imaginária e língua fluida (Orlandi, 1985; Orlandi e Souza, 1988; Orlandi 2009)

  • As relações entre os sujeitos, os saberes, as línguas, os espaços, e os processos de gramatização – gramatização do português, gramatização brasileira do português e gramatização brasileira do brasileiro (Orlandi, 2002; 2009; 2014b; Ferreira, 2013; Ferreira e Faria, 2016; Ferreira e Nogueira, 2016;

  • As relações entre a ciência e o cotidiano (Guimarães (org.), 2001, 2003b; Nunes, 2003).

Essa relação de obras citadas não é exaustiva, mas tem apenas o objetivo de ilustrar como a questão do cotidiano está presente em uma série de produções, de maneiras muito variadas, ainda que, por vezes, não seja o objeto central do trabalho. A proposta dessa primeira linha de pesquisa do projeto e do grupo é a de tornar essa questão como central.

Ainda em relação a essa primeira linha de pesquisa, é possível tecer outro tipo de reflexão sobre o cotidiano a partir do que Certeau (1980) chama de

“trabalho de ultrapassagem, operado pela insinuação do ordinário em campos científicos constituídos”, ou “a erosão que desenha o ordinário em um corpo de técnicas de análise.” (p. 61-62)

Quanto a isso, vale lembrar o texto “O discurso pedagógico: a circularidade”, de Eni Orlandi (1978), em que a autora observa como “O professor apropria-se do cientista e se confunde com ele sem que se explicite sua voz de mediador. Há aí um apagamento, isto é, apaga-se o modo pelo qual o professor apropria-se do conhecimento do cientista, tornando-se ele próprio possuidor daquele conhecimento. A opinião assumida pela autoridade professoral torna-se definitória (e definitiva).”

 

Também é interessante lembrar, a esse respeito, o trabalho de Nunes (2003) sobre a divulgação científica no jornal, pensada por uma relação entre a ciência e o cotidiano, na qual, muitas vezes, o cientista ocupa uma posição no cotidiano, e o não-especialista ocupa uma posição no espaço-tempo da ciência.

 

Portanto, nesse tipo de reflexão, interessa explorar a passagem do científico ao ordinário e do ordinário ao científico, tendo em vista os processos de produção de conhecimento científico, de didatização, de divulgação, e de vulgarização, por exemplo.

 

Trata-se de pensar, ainda, os processos pelos quais conceitos ou noções vão se transformando em palavras do dia-a-dia, a ponto de se tornarem imaginariamente, cada vez mais transparentes e evidentes. Paralelamente, é possível refletir sobre a passagem do ordinário ao científico: como, por exemplo, uma palavra do senso comum se torna um conceito. E como, nesses processos, nem sempre é possível distinguir palavra e conceito. 

 

Ana Cláudia Fernandes Ferreira

Notas

[1] Este texto, um dos primeiros publicados pela autora em análise de discurso, analisa o processo discursivo presente em “textos escolhidos ao acaso”, de exemplares de revistas especializadas para homens (Status) e mulheres (Nova), comprados no mesmo dia. Nesse texto, a autora aponta para a necessidade de abandonar “o domínio daquilo que está inscrito, sob a forma gramatical, na linguagem, para olharmos para o que transborda dela” (p. 66), formulando que “nada do que está na linguagem é indiferente ao sentido” e, em seguida, que “o sentido é indiferente à linguagem. E isto é a polissemia” (p. 66 e 67).

Referências

 

Auroux, Sylvain. A Revolução Tecnológica da Gramatização. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.

Certeau, Michel de. (1980) A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2014, 22ed.

Certau, Michel de; Giard, Luce; Mayol, Pierre (1992). A invenção do cotidiano. 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1997, 12ed.

Fedatto, Carolina Padilha. Um saber nas ruas: o discurso histórico sobre a cidade brasileira. Tese de Doutorado. Campinas: IEL/Unicamp, 2011.

Fedatto, Carolina Padilha. Um saber nas ruas: discurso histórico sobre a cidade brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

Ferreira, Ana Cláudia Fernandes. “Discursos sobre cidades na enciclopédia “tradicional”, na Wikipédia e na Desciclopédia: percursos de sujeitos, saberes e línguas”. Em: Cristiane Dias. (Org.). Formas de mobilidade no espaço urbano: sentido e materialidade digital, v. 2. Campinas: Labeurb/Nudecri/Unicamp, 2013b, pp. 20-46.

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Ferreira, Ana Cláudia Fernandes; Nogueira, Luciana. “A colocação dos pronomes na Grammatica Portugueza de Júlio Ribeiro”. Línguas e Instrumentos Linguísticos, v. 38, p. 11-33, 2016.

Ferreira, Maria Cristina Leandro. “A antiética da vantagem e do jeitinho na terra em que Deus é brasileiro (o funcionamento discursivo do clichê no processo de constituição da brasilidade). Em: Orlandi, Eni (Org.) Discurso Fundador: a formação do país e a constituição da identidade nacional. Campinas: Pontes, 2001., 2ed.

Lagazzi, Suzy. O juridismo marcando as palavras: uma análise do discurso cotidiano. Tese de Doutorado. Campinas: IEL/Unicamp, 1987.

Guimarães, Eduardo. “Designação e espaço de enunciação: um encontro político no cotidiano”. Letras (Santa Maria), Santa Maria, n.26, p. 53-62, 2003a.

Guimarães, Eduardo (org.) Produção e circulação do conhecimento. Estado, mídia, sociedade. Campinas: Pontes, 2001.

Guimarães, Eduardo (org.) Produção e circulação do conhecimento. Política, ciência, divulgação. Campinas: Pontes, 2003.

Lagazzi, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988.

Mattos, Maria Augusta Bastos de. Dispersão e memória no quotidiano. Tese de Doutorado. Campinas: IEL/Unicamp, 1991.

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Nunes, José. Horta. "Enciclopédia, Estado e Escola: os Sentidos de Música". Em: Eduardo Guimarães (org.). Cidade, Linguagem e Tecnologia: 20 Anos de História. Campinas: Labeurb, 2013, p. 137-158.

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